A Eucaristia edifica a Igreja
Quero, em preparação para a Solenidade de Corpus Christi, meus amados bispos auxiliares, presbíteros, diáconos, religiosos e religiosas, seminaristas, leigas e leigos, oferecer algumas reflexões sobre a Eucaristia.
Já é tradicional, na nossa amada Arquidiocese de Brasília, reunirmo-nos na Esplanada dos Ministérios, manifestando, como Arquidiocese, que a Eucaristia é a grande riqueza da Igreja, pois é o próprio Cristo que Se dá a nós no pão e no vinho consagrados. Por isso, dia 30 de maio, às 17 horas, estaremos todos juntos para esta grande celebração eucarística seguida da nossa tradicional procissão luminosa. Neste ano, traremos um quilo de alimento não perecível como nossa solidariedade aos irmãos sofridos do Rio Grande do Sul.
Para iluminar a nossa reflexão, quero me guiar pelo texto da Epístola de São Paulo aos Coríntios: 1Cor 11,23-26. Poderíamos pegar uma das narrações da instituição da Eucaristia feita pelos evangelhos sinóticos: Lc 22,19-20; Mt 26,26-28; Mc 14,22-24; ou ainda poderíamos nos deter no belíssimo capítulo sexto do Evangelho de João, que foi escrito por último, quando os sinóticos já tinham sido escritos e, por isso, não narra a instituição da Eucaristia, mas dedica todo um capítulo sobre o pão da vida, que é a Eucaristia.
A celebração da Eucaristia deu margens a alguns inconvenientes. O ágape fraterno (uma refeição que se fazia antes da Eucaristia), ao invés de preparar em espírito de caridade para celebrar mais dignamente o banquete eucarístico, havia se convertido numa espécie de banquete, no qual a caridade já não era observada, o que impedia participar dignamente na Ceia do Senhor (11, 17-22). São Paulo, neste contexto, narra a instituição da Eucaristia:
«Com efeito, eu mesmo recebi do Senhor o que vos transmiti: na noite em que foi entregue, o Senhor Jesus tomou o pão e, depois de dar graças, partiu-o e disse: “Isto é o meu corpo, que é para vós; fazei isto em memória de mim”. Do mesmo modo, após a ceia, também tomou o cálice dizendo: “Este cálice é a nova Aliança em meu sangue; todas as vezes que dele beberdes, fazei-o em memória de mim”. Todas as vezes, pois, que comeis desse pão e bebeis desse cálice, anunciais a morte do Senhor até que ele venha.»
São Paulo inicia mostrando que narrou o que recebeu do Senhor, isto significa dizer, dos apóstolos, da Igreja. A Eucaristia era celebrada todos os domingos, como é hoje, pela Igreja apostólica e pós-apostólica (At 2,42).
Vejamos alguns elementos do texto:
1 – «Na noite em que foi entregue (…)» O apóstolo acena a situação histórica e teológica, aludindo à narração da Paixão. Alude ao fato daquela fatídica noite em que Jesus foi entregue à morte. Foi entregue: não se refere somente à entrega de Judas, que traiu Jesus, mas também ao sentido de que é o Pai que, por amor a nós, entregou o Seu Filho à morte. O Pai entregou Jesus à morte por nós e Jesus Se entregou por nós. Mediante a entrega de Judas, realiza-se essa entrega que o Pai faz do Filho e a entrega que o Filho faz de Si mesmo.
2 – «Tomou …deu graças…. e partiu»: é a terminologia eucarística que aparece também na multiplicação dos pães. As narrações das multiplicações dos pães prenunciam a Eucaristia.
3 – «Isto é o meu corpo…. Este cálice é a nova aliança em meu sangue….» (v. 24). Jesus fala aqui de algo bem concreto e imediato: pão e vinho que são alimentos essenciais para um judeu, que se tornam o corpo e o sangue de Cristo. O verbo ser (é) cria a identidade entre corpo e sangue e os dois elementos (pão e vinho), aos quais se aplica o demonstrativo toûto (isto). Jesus fala, na última ceia, de Seu corpo, que vai oferecer ao Pai pelos homens, e de Seu sangue que será derramado: «Isto é meu corpo, que é para vós». A palavra corpo significa carne, a pessoa viva, a humanidade de Jesus entregando-Se todo inteiro pelos discípulos, tal como se entregará todo inteiro na cruz. «Este cálice é a nova aliança em meu sangue». A identificação do vinho com o sangue de Jesus simboliza toda a pessoa. O conceito de aliança faz a ligação profunda que unia o antigo Israel com Deus e o fazia «seu povo». O dom de Cristo sacrificado por nós tem como fim (finalidade) a criação do novo Israel, que somos nós. A aliança recorda o incansável amor com que Deus, desde a criação, tratou o homem como amigo, prometeu uma salvação depois do pecado, escolheu os patriarcas, libertou Israel do Egito, acompanhou pelo deserto, introduziu na terra e lhe abriu para a esperança do Messias e do Espírito Santo. A aliança plasma, momento por momento, toda a existência de Israel. Prometida como nova e eterna Aliança na pregação dos profetas, essa é vista como princípio divino que reside na profundidade dos corações, e de dentro, do mais profundo do coração, orienta e influencia toda a vida (Jr 31,31-34; Ez 36,26-27).
Aliando a Eucaristia com a aliança, Jesus quer dizer que a Eucaristia nos doa forças para nos deixarmos atrair totalmente pelo movimento do amor misericordioso de Deus, anunciado no Antigo Testamento, celebrado definitivamente na Páscoa e que culmina na plenitude escatológica: na espera de Sua vinda. São João expressa esta realidade afirmando a dimensão escatológica da Eucaristia: «quem come deste pão viverá eternamente».
4 -A Eucaristia é, assim, memorial de Nova e eterna Aliança. Jesus diz: «fazei isto em memória de mim» (Lc 22,19). O conceito de memória (anamnese) deriva do verbo zakar (recordar) que os LXX traduzem por mnemoneuein. Este termo, ao invés de ser uma simples lembrança, implica uma invocação litúrgica que realiza o que recorda (Ex 3,15;34,5-10). Na recordação (anamnese) as palavras de Jesus adquirem todo o valor original. Essa recordação se dá de maneira cultual, com a presença sacramental e sacrifical do Senhor, o qual torna operante e vivo Seu sacrifício na vida dos fiéis que, na celebração litúrgica, celebram essa nova e eterna Aliança. (A Igreja, repetindo o que aconteceu na cruz, de forma ritual, oferece, no Espírito, Cristo ao Pai). A Eucaristia é então também sacrifício. Este aspecto se torna mais claro nos elementos (pão, vinho, cálice), como também nos gestos de Jesus. Se torna mais evidente com as palavras «… corpo (entregue) por vós». «Este cálice é a nova aliança…», que exprime uma evidente relação com a morte de Jesus. O significado expiatório sacrifical se deduz de forma clara na referência aos cânticos do Servo de Javé (Is 42.1-4;49,1-6;50,4-9;52,13-53,12), referência que aparece em Paulo mediante a preposição hyper com genitivo, que no Novo Testamento é a fórmula mais comum relacionada com a morte de Cristo.
Na Eucaristia, memorial da nova e eterna Aliança, celebramos aquilo que somos: «Povo da nova e eterna Aliança», celebramos a nossa identidade. Somos envolvidos na dinâmica do Seu amor misericordioso, tocamos o ápice do amor de Cristo por nós. Nas palavras do Papa Bento XVI: «Em Sua morte de cruz cumpre-se aquele virar-se de Deus contra Si próprio com o qual Ele Se entrega para levantar o homem e salvá-lo – amor em sua forma mais radical»1.
A Eucaristia arrasta-nos neste amor oblativo de Jesus e nos torna Corpo de Cristo. Diz Santo Agostinho: Aquilo que vedes sobre o altar de Deus […] é o pão e o cálice: isto vos asseguram os ossos próprios olhos. Ao invés, segundo a fé que deve formar em vós, o pão é o corpo de Cristo, o cálice é o sangue de Cristo. […] Se quereis compreender [o mistério] do corpo de Cristo, escutai o apóstolo que disse: Vós sois o corpo de Cristo e seus membros (1 Cor 12, 27). Se vós, portanto, sois o corpo e os membros de Cristo, sobre a mesa do Senhor está posto o mistério que sois vós: recebei o mistério que sois vós. Àquilo que sois, respondei: Amém, e respondendo o subscreveis. Diz-se a ti de fato: O Corpo de Cristo, e tu respondes: Amém. Sê membro do corpo de Cristo, a fim de que seja autêntico o teu Amém2.
Participar da celebração eucarística, comungar o Corpo e o Sangue do Senhor, significa tornar-se cada vez mais íntima e profunda a própria pertença Àquele que morreu por nós. Mas a Eucaristia nos compromete também com o Corpo eclesial. É notória a identificação que faz Santo Agostinho entre o corpo eclesial e o corpo sacramental de Cristo. A comunhão do Corpo de Cristo compromete com o ser corpo de Cristo, conduz ao ser Igreja, à edificação da Igreja. Assim, uma comunidade eucarística vai se desenvolvendo nas suas diversas dimensões: o testemunho, a comunhão, a caridade, a missão – evangelização etc. O compromisso eucarístico vai comprometendo todos na edificação da Igreja, Povo de Deus, Corpo de Cristo e Templo do Espírito. É onde cada batizado vai colocando seus dons e carismas a serviço da edificação da comunidade e a Igreja vai se tornando missionária, evangelizadora, porque todos se doam com alegria nas pastorais, movimentos e diversos serviços na vida da comunidade e na sua atuação no mundo. Assim, o ministério presbiteral não é vivido de forma isolada, mas torna-se aquele ministério que anima e reconhece a diversidade de dons que o Espírito semeou nas nossas comunidades: «reconhecer com alegria e promover com diligência os carismas multiformes dos leigos, tanto os mais modestos como os mais altos»3.
A Eucaristia conduz à caridade e compromete com os pobres. São João Crisóstomo lembra-nos que quem recebe verdadeiramente o Corpo e Sangue do Senhor deve reconhecê-lo no irmão pobre: «Degustaste o sangue do Senhor e não reconheces sequer o teu irmão. Desonras esta própria mesa, não julgando digno de compartilhar do teu alimento aquele que foi julgado digno de participar desta mesa. Deus te libertou de todos os teus pecados e te convidou para esta mesa. E tu, nem mesmo assim, não te tornaste mais misericordioso»4.
Neste sentido, na Solenidade de Corpus Christi, lançaremos um projeto de dignificação da mulher e luta contra o feminicídio. O projeto quer, a partir da antropologia católica, dignificar a mulher e fazer de nossas comunidades locais de proteção e promoção da dignidade da mulher.
A Eucaristia conduz à Missão: «Não poderíamos abeirar-nos da mesa eucarística sem nos deixarmos arrastar pelo movimento da missão que, partindo do próprio Coração de Deus, visa atingir todos os homens; assim, a tensão missionária é parte constitutiva da forma eucarística da existência cristã»5.
O Amor que celebramos e recebemos, por sua natureza, pede para ser comunicado a todos. Por isso, «a Eucaristia é fonte e ápice não só da vida da Igreja, mas também da sua missão: «Uma Igreja autenticamente eucarística é uma Igreja missionária»6. A missão nasce da experiência do amor de Cristo celebrado, recebido e vivenciado em cada celebração eucarística. A experiência do Seu amor nos abre à dinâmica do amor, torna a nossa existência dom de amor. O amor de Cristo dilata o coração, insere a existência humana na dinâmica do extasis, do sair de si, tornando-se dom de amor na evangelização, na missão e na caridade.
Cada cristão é missionário à medida em que se encontrou com o amor de Deus em Cristo Jesus, pois «todos somos chamados a dar aos outros o testemunho explícito do amor salvífico do Senhor que, sem olhar às nossas imperfeições, oferece-nos a sua proximidade, a sua Palavra, a sua força, e dá sentido à nossa vida»7.
Na origem da transformação missionária da Igreja está o amor de Cristo, celebrado e recebido na Eucaristia. Papa Francisco afirma: «Sonho com uma opção missionária capaz de transformar tudo, para que os costumes, os estilos, os horários, a linguagem e toda a estrutura eclesial se tornem um canal proporcionado mais à evangelização do mundo atual que à autopreservação. A reforma das estruturas, que a conversão pastoral exige, só se pode entender neste sentido: fazer com que todas elas se tornem mais missionárias, que a pastoral ordinária em todas as suas instâncias seja mais comunicativa e aberta, que coloque os agentes pastorais em atitude constante de “saída” e, assim, favoreça a resposta positiva de todos aqueles a quem Jesus oferece a sua amizade»8. A comunidade eucarística é uma comunidade sinodal e verdadeiramente missionária.
Comunico que a festa da dedicação de nossa Catedral, neste ano de 2024, será celebrada no dia 1º de junho, uma vez que 31 de maio é festa da Visitação de Nossa Senhora.
Com minha benção apostólica e minha saudação fraterna,
Dom Paulo Cezar Costa